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"O Trote" e "O Galope" Como muita gente sabe, fui sempre um defensor fervoroso e entusiasta, quase obcecado, pelo ensino e valorização máxima do cão perdigueiro. O pouco ou muito que tenho escrito tem andado à volta disso. Mas os anos vão-se passando e quando, agora, desvalorizo ou desaconselho a tentativa de certas práticas, sou veemente contestado por desincentivar o que outrora tanto enaltecia. A minha, de que eu me penitencio, foi a de eu supor que todos os caçadores sentiam e viviam a caça como eu, e como tantos caçadores que fui conhecendo e admirando ao longo dos anos, alguns já desaparecidos, há muito, mas que continuam a ser evocados, com entusiasmo, sempre associados aos seus cães, de que se conta e reconta episódios atrás de episódios. Ser caçador – não magarefe, ganancioso, fanfarão, - é um estado de alma, uma benção da natureza, que induz princípios de conduta, capacidades especiais, que nos conduzem, neste campo, à felicidade e à realização pessoal, com elevação e dignidade. E este estado de graça, jamais alguém será capaz de o alcançar, se não tiver a capacidade de compreender e sentir o encanto e a magia do trabalho do cão que nos adora e nos faz sonhar. Talvez isso nos ajude a compreender a razão por que alguns são tratados com carinho, brio e entusiasmo, quase como fazendo parte da família. E outros, olhados com indiferença, como um frete obrigatório, arrumados em qualquer canto, às vezes nas piores condições (como se viu recentemente na televisão), passando dias, semanas, meses a fio, sem um momento de liberdade. Ora, neste cenário “entre o oito e o oitenta”, englobando naturalmente muitos patamares, não podemos conceber para todo o caçador o mesmo tipo de ensino. Dependerá da motivação e da disponibilidade de cada um. Só que a motivação é tão pouca que cada vez mais se procura fazer em casa ou no quintal, com habilidades desconchavadas de circo, aquilo que sé se poderá alcançar no monte. Depois, mais tarde, quando se lhe pergunta: então como é que se porta o cão? Ora, retrato mais fiel, mais preciso, e mais objectivo, de que o cão não vale nada e o dono ainda não vale menos, não é possível È evidente que em casa poderemos fazer muito, mas prescindir do trabalho do monte, ou relegá-lo para segundo plano, é como querer aprender a nadar sem ter que molhar os pés. De qualquer das maneiras, por mais vasto e complicado que nos possa parecer o ensino, a preparação decente de qualquer cão, com um pouco de esforço e boa vontade, estará perfeitamente ao alcance de qualquer caçador. E então, se esse caçador não fizer questão em se sentir águia no meio dos pardalitos, mais fácil se tornará ainda. Para tanto, e para começar, há que ter em consideração que o primeiro princípio, princípio sagrado e consagrado, para conseguir o máximo de qualquer cão, é fazer com que ele nos adore. Só que, por azar, esse princípio é precisamente o mais propenso a ser esquecido. Mas, se o pesado confrade conseguir superar esse lapso de memória, terá garantido meio caminho andado para o sucesso. Depois, como elemento chave desse mesmo princípio, e que constitui a maior paixão de qualquer cachorro, é só levá-lo regularmente ao mato, percorrendo o terreno como se andasse à caça, orientando, conduzindo, criando-lhe condições para que as coisas vão acontecendo, e de modo a que tudo o que faça, ou lhe seja ensinado, o faça voluntariamente, com alegria, com entusiasmo, e não sob o signo do medo e da repressão. Por princípio, qualquer cão ou cachorro enquanto não caçar, a sua obediência é expontânea, poderá mesmo atar-lhe uma corda ao pescoço e prendê-lo à cinta, que é uma imagem bonita e recomendada, que não constitui qualquer problema, uma vez que a única força que o move é a de dar às patas para não se perder do dono. O mesmo já não acontecerá a partir do momento em que começar a sentir paixão pela caça. Todos nós o verificamos no monte: cães totalmente indisciplinados e incontroláveis, para a desespero e afronta de quem ande por perto, mas apenas porque o seu dono delegou todas as tarefas de ensino, e as outras, ao Divino Criador, e à patroa lá de casa, reservando para si apenas o privilégio de ter ali um escravozinho, a quem exige mais inteligência e saber do que a si mesmo, às ordens de sua Excelência. Por isso, não o ensinou a ouvir, a compreender, a executar, a nada! Quando muito, e na melhor das hipóteses, para o convencer de que está nas mãos de um mestre, atou-lhe uma corda ao pescoço, como a cavalo para aula de equitação, pôs-lhe um gambuzino na frente, e massacrou-o com os habituais exercícios: Senta! Deita! Fica! Olha! Cheira! Anda! Pára! Dá cá a mão! Dá cá o pé! Vai dar um beijinho à dona! e outras macaquices de circo barato, que, desenquadrados da realidade, não têm aplicação prática nem na terra, nem no céu. E, portanto, no monte, na hora da verdade, os berros, os gritos, os assobios, as ameaças, os chamamentos, para o pobre cão, tanto significam “anda para cá” como “anda para lá”, e, por isso, ele continuará a andar e a correr, afastando-se cada vez mais. E assim nasce a inefável coleira electrónica ou coleira de choques, que tem apenas uma virtude: a de poder pôr-se ao pescoço do dono. Ora, para evitar tudo isto, e como de pequenino se torce o pepino, para além da indispensável convivência, em casa e fora dela, a partir das primeiras idas ao monte, devemos manter o cachorro em permanente ligação e colaboração connosco. Assim, sempre que oportuno e sem sermos “carraças”, ele vai para a esquerda, nós assobiamos e cortamos para a direita; ele vai para a direita, nós assobiamos e cortamos para a esquerda; ele vai para cima, nós assobiamos e cortamos para baixo; ele vai para baixo, nós assobiamos e cortamos para cima, etc, etc. Quando verificarmos que ele começa a ter consciência do que anda a fazer, passaremos a alternar o vira à direita e à esquerda com o gesto, isto é, assobiamos ao mesmos tempo que com o braço ou com um pau, que simbolizará a espingarda, lhe indicaremos aonde deve ir. Se casualmente não interpretar o gesto, o que poderá acontecer no princípio, seguiremos nós também nessa direcção. Assim, ele acabará por associar facilmente. Uma vez por outra, quando o virmos distraído, ou fizer ouvidos de mercador, aproveitaremos para nos afastarmos e escondermos em qualquer lado. Ele, habituado como está à nossa presença, ao dar pela nossa falta, ficará tão aterrorizado que, futuramente, com receio de perder-nos, andará sempre de olho em cima de nós, dando-nos, assim, uma maior oportunidade de o comandar pelo gesto, e obedecendo prontamente a qualquer indicação nossa. Eu disse atrás “sempre que oportuno” e “sem sermos carraças” porque na verdade não podemos transformar estes passeios no jogo do “gato e do rato” andando constantemente a massacrá-lo e a distraí-lo com ordens e meias ordens. As coisas têm que acontecer de maneira natural, prática e oportuna. Um outro factor muito importante a ter em conta, pelas eventuais e inevitáveis implicações na sua condução e relacionamento mútuo com o dono, são os seus andamentos ou tipo de busca: “O trote” e “O galope”. O primeiro que se caracteriza por uma busca lenta e curta; e o segundo, por uma busca rápida e larga, por vezes, muito rápida e muito larga. São os dois andamentos ou tipos de busca igualmente característicos e naturais. A manifestação de um ou de outro depende de um conjunto de factores e condições muito diversas e especificas que não cabe aqui pormenorizar, mas que devemos respeitar como coisa sagrada, para não transformarmos a vida do cão e do dono num inferno. O trote é normalmente bem aceite pela grande maioria dos caçadores, não apenas por não representar qualquer dificuldade, mas também por ser o que menos exige ao caçador. De certo modo, poderemos dizer que o trote, mesmo na sua parte mais negativa, é como certos medicamentos: mesmo que não façam bem, mal também não fazem. Também o cão, mesmo tornando-se totalmente inútil, por não se afastar dos pés do dono, pode até ser motivo de elogios e exaltação, pois o rótulo de caçar pertinho e não espantar a caça adapta-se-lhe perfeitamente. O mesmo não se passa com o galope porque, na verdade, uma busca rápida e larga, por vezes muito rápida e larga, não é mel para todos os bicos. E isso verifica-se no monte, a toda a hora: mal um cão se afasta um pouco e é logo reprimido por todos os meios ao alcance. Os verdadeiros motivos são os de sempre, de todos bem conhecidos. Mas como são, de certo modo, inconfessáveis, descobriu-se agora um outro, e de peso!: que a perdiz selvagem só muito excepcionalmente se deixa amarrar. Mas que cientifico! Já alguém viu um desses herbívoros a fugir, espavoridos, só porque avistou um desses temíveis inimigos? Não. Apenas fogem quando eles investem ou aparecem de surpresa dentro do seu raio de segurança. O mesmo acontece com a perdiz em relação ao cão. Tem o seu raio de segurança dentro do qual se sente perfeitamente à vontade, e que o cão conhece e identifica melhor do que ninguém, como o comprova com as suas paragens irrepreensíveis e seus deslizamentos suaves e cuidadosos sem nunca pisar o risco. Como também tem o seu raio de segurança em relação ao caçador, que são duas coisas juntas, mas diferentes. E então aí, sim, aí é que é o diabo! Aí é que a porca torce o rabo! Porque elas sabem por experiências repetidas que o pum! pum! e o chumbo a zunir-lhes aos ouvidos ou a sacudir-lhes as penas, pode acontecer a qualquer momento, de qualquer lado, de qualquer distância e quando menos o esperam. E, portanto, o seu raio de segurança, neste caso, torna-se muito mais precário e imprevisível, duplamente agravado ainda pelo cacarejar constante do seu dono, sempre de trombone ligado a repetir a mesma nota: Volta! Volta! e que mal vê o cão a dar sinal de caça, corre logo sobre ele a chispar ordens e ameaças, pondo tudo nas asas ou a sete pés, comprometendo irremediavelmente o desempenho e a evolução instintiva do cão. Significa isto que a dificuldade em chegar à caça não resulta do trabalho normal do pobre cão, mas da inconsciência e das limitações deploráveis do próprio caçador. Eu caço naturalmente nos terrenos montanhosos da serra da estrela, mas caço igualmente (ou caçava quando o terreno era livre) nas mais diferentes zonas do país, nos mais variados terrenos, e nunca a busca larga dos cães representou qualquer risco ou limitação na aproximação à caça. Antes pelo contrário: embora pareça heresia, quanto mais descoberto ou despido de vegetação for o terreno, mais larga terá que ser a busca, ou mais longe terá que se manter o caçador, para que a caça se deixe amarrar, e permita a aproximação do caçador. Comecei a compreender este fenómeno intrigante há mais de quarenta anos, não na caça, que não há lugar para experiências, mas nos habituais “passeios – treino”, vendo a diferença de comportamento da caça, entre os dias em que os cachorros se movimentavam livremente, comigo à distância, nas calmas ..., e aqueles outros dias em que eu, de máquina fotográfica na mão, armado em paparazzi, mal os via a dar sinal de caça, corria logo, que nem uma flecha, a procurar o melhor ângulo, na ânsia de captar uma boa “paragem”, única prova visível que eu tinha para mostrar que não era difícil por cachorros com 4 e 5 meses a caçar e a amarrarem-se lindamente ... – diferenças essas que não vou agora relatar, pois seria uma descrição demasiado longa, mas que irei explicitar e resumir, de forma indirecta, nos passos seguintes. A perdiz, apesar de ser uma ave de voo rápido e fácil, é igualmente uma excelente andarilha. Portanto, sabendo ela, por instinto ou experiência, que no chão passa mais despercebida e corre menos riscos do que no ar, não é a presença do cão, ou o seu deslizar, à distância, se não tiver por perto a figura sinistra do dono, que a vai por nas asas. Muito naturalmente, se não tiver por ali condições para se camuflar, esgueirar-se-á pelo meio da vegetação, lesta ou ronceira, para perto ou para longe, até se “cravar” em sítio onde se julgue segura, cujo itinerário ou labirinto compete ao cão desvendar, se, entretanto, a inteligência e perspicácia do dono o não tiver já recambiado para trás de si. É precisamente este o lance chave de toda a questão: Caçando nós em terreno descoberto, ao vermos o cão a dar sinal de caça, em vez de nos precipitarmos sobre ele, lançando raios e coriscos para o refrear, devemos permanecer “quietos e mudos” ou, quando muito, acompanhá-lo no seu deslizar, à distância, do mais longe possível, e só quando se imobilizar definitivamente, prova evidente de que a caça já se “cravou”, poderemos caminhar, decididamente, convictos de que, não só será possível a nossa aproximação, como, tantas vezes, quase é preciso pisá-la ou catá-la para levantar voo. Uns dos melhores exemplos vivi-os, há anos, nas restolhadas do Ladoeiro, de extensas planícies, zona de codornizes por excelência, junto à Idanha. Como já estávamos em pleno mês de Outubro, sabendo que as codornizes já tinham sido varridas por centenas ou milhares de caçadores, era de admitir que iríamos encontrar o campo deserto. Deserto de caçadores e talvez deserto de codornizes. Mas numa extensão daquelas, com a benção de Santo Huberto, há sempre a secreta esperança de encontrar sobreviventes. Só a esperança! Como de facto: Não encontrámos um só caçador naquele paraíso imenso, e codornizes, até cerca das nove horas, vimos apenas uma. Já desesperançados de melhor sorte, acabamos por nos juntar, à conversa, limitando-nos a acompanhar os cães nas suas deambulações, fazendo tempo para o almoço. Às tantas, vemo-los, de focinho no ar, parando e deslizando, deslizando e parando, por aquela planície fora... Deve ser lebre que ali vai – exclamou o meu com companheiro – vamos lá depressa! Você esta doido – respondi. Então lebre mexida, num deserto destes, alguém lhe consegue chegar?! Só de helicóptero! Nisto, vemos os cães a afrouxar, afrouxar, até que se imobilizaram de vez, o que era já uma garanti da existência de alguma coisa em espera! Vamos lá – propus eu agora – recomendando-lhe que ladeasse os cães pala direita, e eu pela esquerda, e que, quando os ultrapassasse, de dez em dez passos, parasse de repente um ou dois segundos. Ele, não compreendendo o alcance da coreografia dos passos, ou por ser um jovem dado à palhaçada, ao ultrapassá-los, em vez de caminhar naturalmente, começou a marchar como se andasse na tropa e, quando parava, batia com força o pé no chão e fazia-me continência. Eu pensei cá para os meus botões: este doido não volta a caçar comigo. Um pouco mais à frente, ao repetir a graça pela segunda ou terceira vez, as perdizes começaram a espirrar do restolho, à frente, atrás, à direita, à esquerda, debaixo dos pés, decima da cabeça, de todos os lados. Eram 18 perdizes contadas pelos dois. Eu, que nem uma manada de javalis à minha frente conseguirá aumentar em mim uma só pulsação que seja, aqui fiquei tão perturbado com a inesperada aparição que não fui capaz de raciocinar se também podia atirar às perdizes. Por isso nem um tiro dei. Olho para o meu novo companheiro e vejo-o aos saltos, em grande espalhafato, a atirar o boné ao ar, como se estivesse a festejar, por antecipação, o campeonato do Benfica. E eu, para que ele não pensasse que o chamava doido, peguei também no meu, e atirei com ele ao ar, ainda mais alto do que ele. Escusado será dizer que não pensámos mais em codornizes, e que nesse mesmo dia fizemos uma excelente caçada, e que durante uns tempos, apesar da distância, foi esse o nosso palco de emoções, sempre bem sucedidas, apesar de nos garantirem que ai já não poderia haver perdizes e que, se as houvesse, ninguém lhe chegava, - o que, na perspectiva e convicção de quem falava, eu aceitei como pura verdade. Pois, se não fosse essa uma convicção real e verdadeira, como poderíamos nós encontrar ali um bando de 18 perdizes e mais umas tantas que por lá andavam dispersas e foragidas?! Por isso, eu digo que caçar sozinho, ou só com companheiro, à altura, e cães a condizer, é como deixar de caçar na terra para caçar no céu. Tem apenas um inconveniente: é que há espectáculos que vividos só por uma ou duas pessoas é um desperdício da natureza. Moisés do Nascimento Costa.
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