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A Paragem A paragem é, sem sombra de dúvida, a essência de um perdigueiro. Simboliza-o e personifica-o. Privemo-lo desse dom e teremos nele um corpo sem vida, um empecilho sem préstimo nem utilidade. Não admira, portanto, que o conceito de um bom cão esteja sempre associado à eficiência da paragem, esse dom maravilhoso de se imobilizar, à distância, para não ser notado pela caça, e de o transmitir ao dono, em silêncio, através de electrizantes posturas corporais, a que se convencionou designar por “amarros” ou “paragens”, chegando mesmo ao pormenor de, por vezes, identificar a respectiva espécie venatória, pela posição diferenciada da cauda e do corpo. O reconhecimento generalizado da sua importância leva muitos caçadores a inquirir-se e a perguntar se o amarrar se ensina. É evidente que não. Não seria difícil imobilizá-lo à voz do dono, ao som do apito, a qualquer sinal convencionado. Não é a primeira vez que esse truque tem sido tentado. Simplesmente, para além da mente malabarista do dono, ninguém iria confundir um cão imóvel com um cão amarrado. A paragem é, de facto, um dom natural, instintivo. No entanto, não obstante essa verdade incontestável, não basta esperar, de perna cruzada, que o tempo passe ou cachorro cresça, para que a paragem se manifeste de um dia para o outro, como bênção caída do céu. Não. Isso já não seria um dom natural, seria um milagre. E nós caçadores que privilegiamos mais a morte do que a vida, a destemperança mais do que a contenção, que somos mais caçador-corpo do que caçador-alma, não podemos ambicionar tamanha graça. Por isso, teremos que continuar a puxar pelo nosso adorado corpinho, para que o milagre se realize, sim, mas consoante o mérito do nosso esforço para lhe criar as necessárias condições: A primeira é pô-lo a caçar. Isso mesmo: pô-lo a caçar!. Por certo, ninguém terá a leviandade de se imaginar no monte com um cachorro a amarrar-se, em grande estilo, sem primeiro ter despertado nele o seu instinto de caça. E esta tarefa, como se sabe, leve tempo, requer muitas e frequentes idas ao monte, exigindo, por isso, muita entrega e motivação. É um sacrifício que ninguém deverá regatear, pois, para além da sã convivência em casa, é no próprio terreno, e não no quintal ou na arena, que devemos levar a cabo todo o seu ensino e aprendizagem: vozes ou gestos de comando, entendimento mútuo, chamamento, obediência, ligação ao dono, amplitude da busca, exercícios de procurar e trazer à mão, resistência física, massa muscular. Tudo. Absolutamente tudo! Até a certeza de não passar pela chatice e pela vergonha de, antes das nove ou dez horas, andar já com o pobre cão atrás de si, mais cansado e murcho do que burro velho e doente abandonado. Não é difícil nem complicado: bastará percorrer o terreno como se andasse à caça, calmamente, não faltando tempo nem oportunidade para, simultaneamente, ou cada coisa a seu tempo, realizar tudo o que atrás foi referido. Os primeiros sinais indiciadores da fase possível de paragem manifestar-se-ão, não só pela maneira activa e entusiástica como se movimenta no terreno, mas principalmente pelo impulso instintivo de se precipitar sobre a passarada ou caça que encontra ou levanta à sua frente, e mais ainda quando, nas suas brincadeiras e correrias, dois cachorros se amarram frequentemente um com o outro. Chegados a este ponto, a paragem poderá estar eminente, tanto podendo demorar um dia, uma semana, como uma eternidade, tudo dependendo da regularidade dos treinos e das condições de paragem que o terreno oferecer. É muito importante, verificadas as primeiras investidas, intervir imediatamente chamando-o e repreendendo-o, mas desejando ao mesmo tempo que ele não obedeça prontamente. Eu explico: é que se o deixássemos correr livremente, ou, pior ainda, se o incentivássemos, hoje correria vinte metros, amanhã quarenta, e, com o tempo, se lhe tomasse o gosto, poderia nunca mais parar. Assim, acautelado, diplomaticamente, este lado da questão, temos a outra faceta: é que são precisamente estas corridinhas sempre frustradas e mal sucedidas, talvez associadas às nossas admoestações, que acabam por convencer o cachorro da inutilidade das suas tentativas e o levam a desistir e a parar-se. Claro que não poderemos esperar dele este comportamento com peças de cativeiro, a não ser que lhe atemos uma corda ao pescoço e o levemos ao monte como quem leva uma cabra ou uma vaca ao pasto. Podemos, portanto, concluir que o cachorro não se amarra quando o dono quer, nem quando o dono manda. Amarrar-se-á quando chegar a sua hora, não podemos forçar a natureza. Portanto, querer que um cachorro se amarre à força, e por cada vez que o não faça, ou se lance uns metros sobre a caça, espanca-lo, sová-lo selvaticamente ou massacra-lo com sucessivos choques da coleira electrónica, como muita gente preconiza e faz, é apenas de estúpidos brutamontes, sem alma nem coração, que não têm a noção do que pensam nem do que fazem. As primeiras paragens, por vezes, não duram mais do que uns breves segundos. Irão aumentando, progressivamente, consoante as oportunidades de paragem que o terreno oferecer, e o seu dono melhor souber lidar com a situação. Eu costumo dizer que a paragem é uma espécie de bateria sujeita a cargas e descargas. Quando não há a devida compensação, adeus, bateria. O mesmo se passa com a paragem. Digamos que, neste caso, descargas são todas as asneiras, e são muitas, que todos nós, em maior ou menor grau, cometemos e que poderemos simbolizar com duas situações: Primeira- é a obsessão retrógrada e doentia em querer o cão tão perto e fazer tal barulheira para o conseguir, que o pobre animal quando detecta a caça, esta amedrontada pela presença ameaçadora e atabalhoada do dono, está já em movimento ou em situação de fuga, impossibilitando a paragem, e constituindo tentação irresistível para que ele se precipite sobre ela; Segunda- é a prática sistemática do “deita fora!” que, ao que parece, se destina a pôr nas asas, o mais rapidamente possível, a caça parada à nossa frente. Depois, quando estamos longe, ou demoramos a chegar, já sabemos o que acontece... A paragem consubstancia um estado de êxtase, saboreante e recompensador de todo o seu esforço. Para nós, pura magia, quadro contemplativo que devemos prolongar o mais possível com segredados elogios para que ele os associe ao seu bem fazer e ao gozo e às boas graças do dono, e não a más recordações. Para que isto, não possa parecer devaneio da minha imaginação, vou dar dois exemplos: tanto nos exercícios de procurar e trazer à mão, como no treino do “Fica!” (quando o praticava) sempre me desfiz em mil elogios e recompensas... Quando, por qualquer motivo, tinha que dar dois berros fingindo-me muito zangado, não raras vezes, alguns cachorros não compreendendo nem adivinhando a qual me dirigia ou que raio de bicho me tinha mordido, a primeira reacção instintiva era alapardarem-se na pose do “Fica!” ou deitarem o dente ao primeiro objecto que estivesse a jeito e virem direitos a mim, com ele nos dentes, rabo a abanar, cientes de que essa atitude era “pára-raios” infalível para todas as trovoadas por mais ameaçadoras que elas se apresentassem. Por isso, confiante na força e no poder da retribuição, devoto convicto da persuasão paciente e carinhosa sobre a repressão vil e sofisticada, sempre que vejo um cachorro amarrado, mesmo sabendo tratar-se de passarada ou de odores frescos de caça que por ali passou, nunca deixo de me aproximar para o adorar com mil meiguices, tentando prolongar a paragem o mais possível, sem me incomodar minimamente com o estigma absurdo e maniento das falsas paragens. Tem sido a observância deste e outros princípios que me têm permitido dar-me ao luxo de não perder tempo só com um ou dois cães. Quando saio, levo o carro cheio. Desses passeios-treinos tenho longas cassetes com muitas e muitas horas de gravação, para uso doméstico e para quem as quiser ver, só à base de paragens, com três, quatro, cinco, seis e mais cães, parando e deslizando, deslizando e parando, cruzando-se entre si em todas as direcções, sem que algum deles comprometa ou perturbe o trabalho dos outros, sem berros sem ameaças. Eles têm o cuidado de olhar para trás para não perderem o meu contacto e se orientarem. E isto é tanto mais de admirar quanto é certo que muitos dos protagonistas são apenas cachorros com cinco, seis, sete e oito meses. Ora isto suponho não ser assim tão banal, pois tendo vídeos espanhóis, franceses, belgas, ingleses, australianos, etc, alguns excelentes, com cães veteranos de grande nomeada, mas onde raramente se vê mais de um ou dois exemplares trabalhando em conjunto; e quando isso se verifica, logo que um se amarra, os outros são imobilizados ou agarrados pelo respectivo dono. Como dizia o antigo reclame da televisão: -eles lá sabem por quê. Quero concluir dizendo que para ter um cão à altura não basta fazer-lhe o teste da paragem, admirar-lhe a excelência do pedigree, treinar-lhe duas ou três habilidades tiradas do manual de instruções, e tomar logo a atitude da rola que, ao ver o fundo do ninho feito, suspirou de alivio: pronto, já está! Não. Para colher é preciso semear. Moisés do Nascimento Costa |
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