Depois é que se vê:
Quem as paga é o Cão!

Quando pensei em adquirir o meu primeiro perdigueiro, tive o bom senso de, primeiramente, me documentar, já que de perdigueiros, como qualquer principiante, conhecia-os muito bem por fora, mas ignorava-os totalmente por dentro.
O único saber que me acompanhava já do tempo de garoto, por gostar de escutar a conversa dos caçadores, era que os perdigueiros se marravam. Pensando eu que o marrar-se, por analogia com a história do passarinho que, hipnotizado pelo olhar da cobra, se lhe ia meter na boca, significava: o cão a olhar para a perdiz, a perdiz a olhar para o cão, hipnotizada ou encantada, e que, depois, era só ir por trás, com muito jeitinho, sem barulho, para não lhe desviar os olhares, saltar-lhe em voo para cima ou acertar-lhe com uma pedra na cabeça, e dependurar numa das alças das calças. A outra era para não as perder.
Quando mais tarde descobri que não era bem assim, fiquei muito decepcionado a olhar para a minha pobre fisga que eu já tinha celebrizado no meu imaginário.
Foi com este vasto e prometedor currículo que eu entrei no mundo dos cães de parar através dos livros: "Ensino do cão de parar" de Dr. João Maria Bravo; "Je dresse Mon chien d'arrete" de Abbé Godard; "O Perdigueiro Português" e "Conselhos Velhos para Caçadores Novos" de P. Domingos Barroso; "Estudo sobre o Perdigueiro Portugês" de Leopoldo Machado Carmona; "Guia do Jovem Caçador" do Major António de Castro; jornais e revistas etc, etc, e nunca mais parei.

De tudo o que li nesta primeira fase, desde o bom e o excelente até ao mais ridículo e aberrante, o que mais me impressionou e cativou, e que desde logo gravei na minha mente como referencia e ponto de orientação, foram estes dois conceitos:
1ª Ensinar um cão não é tirar-lhe os defeitos, mas evitar que ele os adquira.
2º O primeiro princípio para conseguir o máximo de qualquer cão é fazer com que ele nos adore.
Nem de encomenda se poderia escrever coisa mais a preceito para quem, orgulhosamente, alimentava a vaidade de ser caçador.
Só então, já um tanto seguro de mim mesmo pelos ensinamentos assimilados, adquiri o meu primeiro perdigueiro: um cachorro castanho, sem pedigree, mais tarde identificado como Perdigueiro Português, por 280$00, em Pedrogão Grande.
Foi o célebre Brown, que ficou famoso – e me deu especial protagonismo – em todos os lugares onde tive de assentar arraiais para exercer a minha profissão.
Eu, embevecido, vaidoso, mais inchado do que se tivesse uma dinastia de reis na barriga, exultava, contemplativo, quase em êxtase, pela sua capacidade de aprendizagem e progressão, pela magia e emoção que transmitia a quem o observava, de tal maneira que o cão de parar acabou por se tornar para mim uma paixão, tão grande que só pelo prazer de os ver trabalhar e evoluir, pela sensação indizível de os sentir felizes e contentes no caminho da sua realização vocacional, por reconhecer nesses passeios o principal factor de adoração pelo dono, chave-mestra de todos os segredos e mistérios, que desde então até hoje, salvo em casos de força maior, que nunca mais prescindi do prazer e do dever de os levar ao monte todos os dias. Um pacto sagrado!
Vantagens?!
Todas e mais uma: a impar oportunidade de os conhecer inteiramente por dentro e de poder contestar a santidade das palavras mansas e doces de tantos santinhos de pau.

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Eu comecei este texto dizendo que tive o bom senso de me documentar.
Atualmente, em vez disso, entre a indiferença e o desleixo, a que chamam falta de tempo, sobressai a impreparação e o desapreço, cada vez mais generalizado, que ressoa desabridamente na maneira como se lida com ele e até na argumentação com que se apresentam para garantir a melhor aquisição:
Mas olhe que eu queria um cachorro "que tirasse bem de ferido!"; "que se marre bem!"; "Que não pique a caça!"; "que traga bem à mão!"; "que cace pertinho!"; "que não se afaste mais de quinze ou vinte metros!"; "que não seja medroso!"; "que obedeça ao dono!"; "que não tenha medo dos tiros!"; "Já lhe fez o teste da paragem?" etc, etc, etc!
Ora, toda esta lengalenga poderá parecer corretíssima, isenta de qualquer reparo, mas aos olhos de qualquer caçador que se prese, mais não serão do que bacoquices típicas do protótipo caçador virtual.
É evidente que todos nós partimos do pressuposto que qualquer cão de parar seja portador de todo o potencial genético que caracteriza a respectiva espécie.
Simplesmente, para lá de todo esse suporte de base, para que todos esses seus dons ou atributos vocacionais despertem e se desenvolvam, aos mais diversos níveis, e não degenerem ou se atrofiem, é absolutamente indispensável criar-lhe as necessárias condições. Portanto, em condições normais, isto é, se a sua natureza não tiver já sido adulterada pelas nossas sabichices, o cão ser ou não ser o que cada um quer ou não quer, depende rigorosamente de quem lida com ele desde as primeiras horas:
O dono tem que saber o que deve fazer – e fazê-lo. E saber o deve evitar – e evitá-lo.
O grande problema é quando não se sabe nem uma coisa nem outra!

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Considerando a frequência das idas ao monte como o principal factor de valorização e entendimento entre o dono e o cão, suponho não ser descabido insistir neste ponto: já salientei que solto e passeio os cães todos os dias. Simplesmente, como tratar de um canil não é o mesmo que tratar de um cão, é evidente que não saio só com um de uma vez, levo o carro cheio. E chegados ao monte, não solto só um deixando os outros fechados, sabe Deus como, à espera da sua vez, reduzindo o tempo de cada um a pouco mais do que nada. Não! São passeados ou exercitados conjuntamente, sem berros, sem ameaças, sem choques, em perfeita ligação e entendimento, porque, como diz o povo, quem não teme a palavra também não teme a pancada.
Com os cachorros passa-se o mesmo. Se tivesse de sair e ensinar um de cada vez, não daria para o oxigénio que respiro, nem o dia teria horas que chegassem. Assim, a partir dos dois meses, tal como já aconteceu com os seus progenitores, são predominantemente treinados em grupo de três a cinco elementos, todos eles da mesma idade e da mesma ninhada. Acrescento e sublinho já que a fase final do ensino é sempre programada para os meses de Agosto e Setembro.
E porquê?!
Pela feliz circunstância de bem cedo ter descoberto nos sítios mais recônditos desta serra da neve, onde o centeio era semeado, autênticos "paraísos" de codornizes, perdidos e ignorados, visitáveis apenas a partir dos primeiros dias de Agosto, após a conclusão das ceifas e das malhas, até meados de Setembro, altura em que de um dia para o outro desapareciam como fumo.
Por isso, os cachorros recrutados provinham sempre de uma ninhada de modo a que em Agosto tivessem já, pelo menos, quatro meses. Cachorros estes que a partir dos dois meses são logo intensivamente exercitados, pelo monte, beneficiando agora do facto de ser praticamente indiferente haver ou não haver caça, o que nos permite aproveitar qualquer terreno. Na verdade, basta o contacto direto com a natureza, infestada de cheiros e odores da mais diversa bicharada, para despertar neles o instinto de caça ou de busca. Nós temos a noção do vale mais e do vale menos. Para os cachorros há a penas o prazer instintivo de caçar, tanto entusiasmo sentindo por uma cotovia, como por uma perdiz ou abetarda.
Portanto, nesta fase inicial, o que é preciso é despertar nele o seu instinto de caça, sem esquecer que, em simultâneo, e sem mais esforço ou perda de tempo, temos oportunidade soberana de levar a cabo todas as outras ações conducentes à sua preparação integral.
Ora, era com esta bem estruturada preparação que a partir dos quatro meses, em Agosto, davam entrada no "paraíso", onde, de restolhada em restolhada, eram exercitados durante três a quatro horas, ora de manhã, ora de tarde, e, às vezes, de manhã e de tarde, não obstante os noventa e cinco quilómetros de cada viajem de ida e volta.

Invariavelmente, durante este mês de Agosto ficavam mestres na paragem, e não só!
O mês de Setembro era também religiosamente aproveitado até ao último momento, não direi já para reconsolidação, mas mais pelo prazer de os ver trabalhar e de eu me sentir realmente no paraíso.
Todo este introito para fundamentar três simples pormenores que tanta comichão fazem na casmurrice de certas mentalidades:
1º Nunca encontrei um cachorro que não fosse cem por cento receptivo ao ensino voluntário de trazer à mão, com entusiasmo e paixão.
2º Em toda a minha vida nunca treinei um cachorro que não se marrasse naturalmente. É certo que muitas vezes, antes disso, como é natural, tentam uma corridinha sobre a peça levantada. Eu, simplesmente, para que não pensem que gosto muito de os ver correr, chamo-os com veemência, em tom severo; mas, quando chegam a mim, desfaço-me em festas e meiguices. Se eu o sovasse, para a próxima fariam ouvidos de mercador, ou, quanto mais os chamasse, mais se afastariam. –Daí o triste remendo dos telechoques.
De resto, foi sempre convicção minha que são precisamente estas inocentes corridinhas, sempre mal sucedidas ou inúteis, que os levam a desistir e a ativar o seu instinto de paragem.
3º Sendo os cachorros de cada grupo todos da mesma idade e da mesma ninhada, exercitados no mesmo terreno, à mesma hora, durante o mesmo tempo e o mesmo tudo, nunca os cachorros de cada grupo começaram a marrar-se no mesmo dia: hoje marra-se um; amanhã ou depois, outro; e assim sucessivamente, de tal maneira que entre o primeiro e o último decorre um período de tempo muito considerável, sem que o primeiro seja sempre o melhor; ou o último, sempre o pior. Bastantes vezes sucede precisamente o contrário.
Agora, pergunto eu:
Perante um cachorro ou cão que não tem ainda qualquer possibilidade de se marrar, nem por milagre!, e pior ainda quando o dono não tem a capacidade, nem o saber, nem a experiência para o poder prever, a que propósito, e com que fundamento, é sovado selvaticamente ou massacrado com choques sucessivos!? Transcrevo, a propósito, o seguinte:
"... por muito que nos custe, é chegada a hora de lhe darmos a primeira sova a valer. E nada de comiserações. É bater com força enquanto gritamos: Deite-se! Deite-se! Deite-se! etc, etc, etc."
Ora, um ensinamento destes para quem quer começar e nada sabe é simplesmente de pasmar!
E o mais surpreendente e que não se trata de um qualquer treinador domador ou artista de circo, mas de um prestigiado autor-caçador, que eu, sinceramente, muito aprecio e admiro.
Como é então possível uma barbaridade destas, à vista de toda a gente?!
Simplesmente, porque todos nós temos um pouco daquele histórico sapateiro que se propôs comentar um quadro de um célebre pintor...
Assim, também neste campo, mais do que em qualquer outro, há sempre alguém que, eivado de exacerbada vaidade e ambição, ou a coberto do estatuto de muito saber e bem escrever, basta-lhe aprender uns rudimentos sobre lagartixas para se pôr logo a dissertar de cátedra sobre crocodilos e tubarões.
Depois, é o que se vê: quem as paga é o cão!

Um afago muito carinhoso para todo o cão de parar.

Moisés do Nascimento Costa