Quem Sabe o Que é Um
Cão de Caça
SEI EU! É O ESCRAVO E O BOMBO DO CAÇADOR!
Bem podia ser este o retrato ou síntese do perfil de tantos afamados caçadores, como se poderá deduzir por tudo o que vamos vendo, lendo e ouvindo.
Vem isto a propósito do seguinte: - recentemente, de passagem por certa região, ao entrar num restaurante reparei naturalmente na única mesa ocupada por um grupo de indivíduos, um dos quais, pela posição do tronco, da cabeça e dos braços, simulava um cão amarrado.
Já não morro de pasmo – confidenciei eu cá para os meus botões. Por isso, como a menina do restaurante me mandou sentar onde quisesse, fui ocupar a mesa do lado, com o ar mais alheio e indiferente que pude arranjar para que a minha curiosidade não fosse notada.
Gente grada e bem falante!
Ao mais expedito, ouvi chamar-lhe professor: não sei se professor primário, se professor do secundário. Mas, pela eloquência como se expressava, eu acho que devia ser professor catedrático, fugido de qualquer manicómio.
Dizia ele: “o meu cão tem um pedigree tal que até a Rainha de Inglaterra se orgulharia de ter”. E, depois de descrever a árvore genealógica, que eu já não consigo encarreirar, mas onde não havia vergôntea ou rebento que não fosse campeão de qualquer coisa, nem dono que não fosse de Sócrates para cima a atestar o seu elevado nível social, continuou:
“A arte suprema de qualquer carnívoro caçador está na captura da presa. Da eficácia desse dom depende a sua sobrevivência e a perpetuação da sua espécie. (lindo! Que inveja eu tenho destes sopros de talento!)
A primeira vez que o levei à caça, caça a sério, ainda ele não tinha um ano. Ao ver o “Bolota” amarrado, talvez intrigado por aquela postura repentina e esquisita, levanta o focinho, e de corpo tenso, pelo eriçado, passo lento e hesitante, vai-se aproximando e pára a cerca de três ou quatro metros. Nesse instante, irrompe uma perdiz! O cão, como que num golpe explosivo de levitação, salta e zás! A perdiz estava-lhe nos dentes e de imediato na minha mão.
Ora isto – concluiu - é o requinte máximo do melhor que alguém poderá esperar de um cão!”
Os parceiros, à medida que iam esfarrapando nas pernas e nas asas do frango, iam abanando a cabeça, cada um a seu compasso, dando-lhe a perceber que estavam de pleno acordo e muito sensibilizados por tão fino saber.
-Ó Pessor – interrompeu um deles - que é feito daquele cachorro, bonito!, que eu lhe vi no campo de treinos a lançar-se à charca para lhe trazer o pau?
- Aquele cachorro! – disse com proeminência declamatória – Aquele cachorro será sempre um mistério e um enigma indecifrável na minha mente, tão grande foi a minha desilusão.
Aquele cachorro, tive que me desfazer dele porque, apesar de todos os esforços, de todas as tentativas, a bem e a mal, quer com perdizes, quer com codornizes, “não consegui ensiná-lo a amarrar-se”...
Eu, aqui, só não me engasguei e dei um salto na cadeira porque já estava vacinado com a mesma frase, lida, tempos antes, em artigo muito literário, e tão enciclopédico e doutrinal que eu li, reli, e arquivei religiosamente na minha mente por constituir prova segura de que quem escreve só para mostrar que sabe tudo é porque não sabe de nada, como era o caso.
- Então o meu – contrapôs, muito sensatamente, o do lado – é uma categoria a amarrar-se e nunca gastei um tostão com perdizes ou codornizes. Ele que as procure. E então para tirar de ferido!... Só que o filho da ....., mansinho como é, quando está a comer, nenhum cão chegue ao pé dele, até às cadelas morde!...
- Oh – interrompeu o catedrático, de peito arfado, muito senhor de si, por vislumbrar mais um ponto de glória no seu currículo - casos desses tenho eu tido muitos que resolvo logo à nascença. Já lá tenho, a jeito, uma tira de pneu. Os gajos levam logo ali uma coça que ao segundo ou terceiro dia, mal me vêem com a comida, refugiam-se logo a um canto e só vão comer depois dos outros se afastarem. (sem comentários)
A conversa continuou, agora menos perceptível devido à chegada constante de pessoas, algumas moucas, outras com microfone nas cordas vocais, recreando o animado ambiente de café em dias de futebol, mas dando perfeitamente para perceber que falavam de chatices havidas com os vizinhos por causa do barulho dos cães, mal pensando eu que o melhor, ou o pior, estaria par vir na revelação de um deles:
“Os meus também tinham essa mania, mas olha que agora ninguém os ouve”
E explicou!
Ó pá – exclamou um, aplaudido pela gargalhada de todos – e tu fazes isso?!
“Isso” que eu, para bem do cão, não posso reproduzir para não desvendar a safadeza, pois há coisas que nem o diabo deve saber, quanto mais aqueles que pensam que são caçadores.
Pensava eu que a utilização da coleira electrónica, agora elevada à categoria de “colar de ensino”, numa escala degenerativa, representasse o ponto mais negro no brio de qualquer caçador que se preze. Afinal temos aqui um parceiro, sem igual, que mais do que um ponto negro é um mega borrão que, em rudeza e crueldade, ofusca e desbarata qualquer adversário. E por muito felizes se poderiam dar quase todos eles, se só houvesse esses dois pontos atormentá-los. Mas, para além deles, quantos pontos negros não haverá mais em cada um de nós, na nossa relação com o cão?!
Estou a pensar:
- no à vontade com que se abandona o próprio cão condenando-o à fome, ao medo, à tristeza e à inevitável morte sofrida e angustiante;
- nos cães que só recebem baldes de comida azeda uma / duas vezes por semana;
- nos cães encurralados, de montão, nas piores e mais degradantes condições, sem, ao menos, mais uma divisão para protecção dos mais indefesos ou para isolamento dos mais agressivos: -em que uns comem tudo e outros vão morrendo de fome e à dentada;
- nos cães presos cada um a seu tronco de árvore, com um bidão metálico ao lado, bem podendo imaginar a fornalha abrasadora que será no verão e a câmara frigorifica que será no inverno;
- nos cães que passam dia e noite em constante lamento ladrando e uivando, sem que isso incomode os seus donos e os faça raciocinar. Bem pelo contrário: mais parecendo soar-lhe como um hino de adoração e louvor na convicção de que quantos mais cães e mais barulho fizerem maior será o seu estatuto de caçador na vizinhança;
-nos cães sistematicamente massacrados por outros ao entrarem no carro ou atrelado, agressividade que, por vezes, se repete na viagem, alimentando entre eles ódios insanáveis, sem que os seus donos se preocupem ou tenham a mínima noção ou entendimento de quais os cães deverão ser os primeiros ou os últimos a entrar;
- nos cães que sofrem e morrem dentro do carro, ao sol, enquanto os seus donos, muito bem refastelados em volta do comedouro, vão alargando o cinto para aumentar a capacidade do seu depósito;
- nos perfumadinhos, tipo menina não me toques, incapazes de falar e fazer festas ao cão ou de consentir que ele se empine ao dono a mendigar uma carícia – repelido com tal aspereza e frieza que deprime e angustia;
- na falta de jeito daqueles que para meterem o cão no carro ou atrelado, é arrastado pela coleira e depois içado para ser empurrado lá para dentro, mais parecendo um simulacro ou tentativa de enforcamento;
- nessa cambada desmiolada e imbecil que quer agora promover a chumbadela a método de ensino para corrigir ou evitar que o cão se alargue, argumentando que em França e Itália é essa a prática corrente. Um desses iluminados, um pouco antes de entrar numa prova de caça, dependura duas perdizes ao pescoço do cão e massacra-o com o “fica!”, eficientemente auspiciado pela magnanimidade do inefável “colar de ensino”. De seguida, manda-o avançar no terreno. Quando o pobre animal ultrapassa a linha idealizada na sua cabeça, dá-lhe um dos tais “tiros de ensino” e mata-o, convencido que só lhe faria umas cocegazitas.
-naqueles que passaram ou passam uma vida inteira a lidar com o cão, sem que dentro deles tenha entrado ou saído alguma coisa que mereça uma lambedela do cão;
Em contraste com tudo isto, por dever de gratidão, e para meditação de todos nós, quero apenas acrescentar, plagiando já não sei quem, que o cão, por mais escorraçado e maltratado que seja, nunca deixará de lamber morta a mão que lhe deu o pão, ainda que esse mísero pão tenha sido amassado pelo diabo.
Agora ouçamos alguns dos seus mais sacrificados donos, com tempo para tudo e mais alguma coisa, menos para o cão, quando as inevitáveis consequências ou azares acontecem:
Arre diabo! Há gajos que não ligam nada aos cães e nada lhes acontece.
Eu, então, anda a gente aqui com preocupações a dar-lhe de comer, licenças, vacinas e tudo... Terminando com umas reticências tão compungidas e sentidas que salta logo aos olhos estarmos na presença, não apenas de um homem bom, mas também de uma vítima da injustiça Divina.
Moisés do Nascimento Costa
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