Ensino do Cão Perdigueiro
Coleira electrónica

Não é preciso ser muito perspicaz, nem ter especial conhecimento dos princípios temperamentais e afectivos que caracterizam a ligação do caçador ao cão, para deduzir e concluir que a invenção e o negócio chorudo da coleira electrónica não veio para lhe facilitar a vida.

Na verdade, pela experiência de cada um de nós, e por tudo aquilo que vemos e sabemos, é mais do que evidente que no campo do ensino, salvo honrosas e louváveis excepções, que são muitas, a nossa actuação ou a força do nosso querer e saber está essencialmente entre a correada e o pontapé, e se mais não levam é porque a biqueira da bota e as ondas do nosso mau génio têm alcance limitado.

Por isso, imaginemos agora um telecomando de choques na mão de qualquer caçador feito à pressa ou de encomenda, aselha mas convencido, que nada dá e tudo exige, mal humorado, irascível, sádico, que instituiu na sua mente a traulitada e outras sevícias inenarráveis como essência e parte integrante do ensino.

Para ilustrar, e como ponto de partida, três exemplos:
1º - Há uns tempos, mal tinha começado a caçar, sou alertado por barulheira invulgar: risadas, asneiredo de ferver, e frases soltas como: SÃO AS PULGAS! DANÇA BALET! OLHA OS FUSÍVEIS! etc, etc...

Dada a distância e o acidentado do terreno, com muita pedra e vegetação, não pude confirmar as minhas suspeitas. Por isso, apreensivo, querendo certificar-me, alterei a minha volta de maneira a poder observá-los em determinado ponto.

Quando cheguei, deparei, de surpresa, com os três indivíduos juntos, parados, à volta de qualquer coisa. Aproximei-me, como quem ia passar, e vejo um cão de coleira electrónica ao pescoço, inanimado, como morto, logo seguido de grandes convulsões, ao que eles achavam muita graça.

Eu, bem a par da situação, reagi com alguma aspereza, mas sempre com o intuito de os aconselhar e orientar. Um deles, um fedelho que parecia não ter idade para ser meu neto, mas albardado a rigor, tratando-me por tu, dirigiu-se a mim nestes termos:

Ó velhocas, afinal, o que é que tu queres? O cão é meu! Vai-te ....

2º - Eu próprio criei e treinei determinado cachorro até aos oito, nove meses. Um cão de caça excelente: simplesmente, tal como eu gosto, tinha uma busca vigorosa e ampla, que, como se sabe, não é do agrado de muita gente, que prefere um cão a caçar devagar, devagarinho, sempre muito juntinho ao caçador. Era esse o caso do novo dono. Por isso, levado por um desses anúncios que prometem e garantem tudo, o cachorro foi confiado a alguém no sentido de inverter a situação. Só que o mestre, nas suas lucubrações electrodinâmicas, deve ter trocado e baralhado os pólos ou as válvulas porque a partir de então, quando levado ao monte, e logo que lhe abrissem a porta, não mais lhe punham os olhos em cima.

3º - Como é suposto, nas provas práticas de caça, estão os melhores e mais esclarecidos. No entanto, não obstante esta evidência, até mesmo aí não é raro aparecerem cães que, ao detectarem os aromas da caça, em vez de se amarrarem ou seguirem o veio odorífero, conforme o caso, param, a tremer e às voltas, atarantados, sem saber o que fazer, mostrando bem como elas lhe mordem.

Ora estes três exemplos, sem comentários, mas que se repetem e multiplicam a cada a hora e por toda a parte, são bem a prova provada de que o cão com a coleira electrónica ao pescoço é uma vítima indefesa, sem fuga, sem escapadela possível nas mãos de qualquer selvagem ou brutamontes. E santos destes não há ninguém que não os conheça, não digo às dúzias, mas, pelo menos, aos pares.

Compreendo e aceito o reflexo condicionado como ciência, como investigação, como ponto de reflexão, e até como prática e aproveitamento corrente no rato, nos abelhões, nas pulgas e em todos os animais grandes e pequenos que não têm entendimento, não compreendam a nossa linguagem, não tenham a noção do bem nem do mal, ou simplesmente pela sua ferocidade ou perigosidade. Agora no cão!: o melhor amigo do homem, companheiro inseparável, prestador dos mais relevantes serviços, caçador por excelência, ver os seus dons, os seus instintos, as suas capacidades, a sua proverbial dedicação e entrega, totalmente subordinadas à coleira de choques é simplesmente de bradar aos céus, que só tem paralelo numa certa elite de intelectuais, destes novos tempos, que, não tendo aprendido a tabuada na primeira classe, agora, para saber quantos são dois mais dois têm que recorrer à maquina de calcular.

Eu não duvido que, com a referida coleira, possam atingir os mesmos objectivos. Se até o feroz e valente leão faz tudo o que o homem do chicote quer, quanto mais a fera mansa e submissa do pobre cão!

Mas eu não estou a falar de feras, de domadores, e de artistas de circo. Estou a falar do cão, do caçador e da sua relação e saber.

Há um bocadinho de diferença:
Domador – qualquer um se poderá fazer num minuto, só precisará do manual de instruções;
Caçador – muitas vezes, não chega uma vida, e alguns nem que tivessem sete como os gatos.

Para melhor se avaliar o ridículo da situação, vou apenas referir-me, como simples exemplo, à “paragem”.
Como se sabe, a paragem não se ensina, é um dom natural, instintivo. Mas isto não significa que o cão se amarre quando o dono quer ou quando o dono manda. Amarrar-se-á apenas quando chegar a sua hora, não podemos forçar a natureza: primeiro é preciso despertar nele o seu instinto de caça, que leva o seu tempo e as suas volta; só depois virá a paragem que também leva o seu tempo e as suas voltas.

Portanto, pegar num cão ou cachorro que não tem ainda qualquer possibilidade de se amarrar, nem por milagre, levá-lo ao monte ou lançar-lhe no terreno umas tantas perdizes ou codornizes de cativeiro e andar ali de comando na mão, de olhar nervoso e alvoraçado, à espera que ele encontre e levante a caça, para o massacrar com choques sucessivos, convencido que o anda a ensinar a marrar-se, é, no mínimo, merecedor da mais piedosa compaixão.

Aceito ainda que qualquer caçador, desiludido de si mesmo, ou habilmente negaciado pelos ardis da publicidade, veja na famigerada coleira a sua tábua de salvação. Assim sendo, em consonância com o velho ditado “quem vai para o mar prepara-se em terra” também neste caso não deve esperar pela confusão da caça para o treinar, mas começar já, agora no defeso, calmamente, com todo o tempo deste mundo, para por em prática todo o seu plano de acção de maneira a conseguir agora tudo o que desejar ver repetido na caça.

Quando achar que o conseguiu, brioso como é, só terá que lhe retirar a coleira do pescoço e atirar cm ela para o fundo de um poço para que ninguém saiba nem desconfie que a utilizou, esperando apenas que chegue a hora da verdade, na certeza de que o cão será o enlevo e encanto de todos os olhares, e o seu dono, revendo-se, vaidoso, no sucesso do seu trabalho, sentir-se-á glorificado como artista de primeira.

Mas, se, em vez disso, depois de tanto esforço, e de todos os favores da técnica e da ciência, com a bênção de todos aqueles que com ela ganham dinheiro, continuar a apresentar-se no monte com o cão vergado ao peso ignóbil da coleira, cabisbaixo, marasmado, sem alegria, sem iniciativa, unicamente preocupado com a presença fantasma do dono, isso então, o cão mais não será do que uma pobre vítima, e o seu dono, e vez do glorificado artista de primeira, não passará de um desprezível trolha de segunda.

Diz o povo na sua velha sabedoria, que pai impertinente faz o filho desobediente, ou, de outra maneira, quem não tem uma palavra não teme a pancada.

Transpondo isto para o cão, poderíamos traduzi-lo dizendo que o primeiro princípio para conseguir o máximo de qualquer cão é fazer com que ele nos adore.

Mais fácil e acessível ao entendimento de qualquer caçador é impossível.

Simplesmente, sendo fácil e acessível, por comodismo ou na condição de devoto congénito da lei do menor esforço, não o poderá imaginar ainda mais fácil, supondo que, para o conseguir, bastará guardar-lhe todos os ossinhos que não consegue comer ou mimá-lo com fugidias carícias na cabeça para depois o encurralar, dias, semanas, meses a fio, sem lhe ligar patavina, quantas vezes nas piores condições.

Ele ficará muito mais contente e gostará muito mais de si, se, em vez desses rasgos comoventes de privação e carinho, lhe der todos os dias um valente pontapé: um de manhã, outro à tarde, desde que logo a seguir o leve uma ou duas horas para o monte.

Isso, sim! aí, deslumbrado com a largueza de horizontes, com a liberdade de movimentos, num ambiente que faz parte da sua natureza, a primeira coisa que ele fará será esquecer e perdoar o estúpido pontapé.

Depois, passo a passo, - passos que não indicam só andamento, mas também realização íntima plena – que hão-de ser muitos milhares ou muitos milhões, ao longo da vida, sem coleira electrónica, sem chicote, sem botas ferradas, sem artifícios aviltantes, mas num clima de entendimento e confiança, sabendo criar-lhe condições para que os seus instintos, os seus dons, as suas capacidades natas, despertem e se desenvolvam naturalmente de forma a que tudo o que faça, o faça voluntariamente, por compreensão, com alegria, com entusiasmo, com paixão, e não por subjugação a toques de dor e de medo, estará, perante o cão, não apenas a edificar o seu pedestal de adoração, mas também, ao mesmo tempo, a aprender com ele, com cada um deles, experiências e saberes únicos que lhe permitirão, um dia, fazer de cada um “o melhor cão do mundo”, e compreender, finalmente, o que é um caçador, um domador, um artista de circo, um “laró-laró” ou o não ser coisa nenhuma.

Moisés do Nascimento Costa
Seia, Dezembro de 2008