Cobro Forçado

Salta logo aos olhos que o termo “forçado” não augura nada de agradável.
Eu cedo tomei conhecimento da existência do método, há muito anos, através do livro “Je Dresse Mon Chien D’arret”, de Abbé Gobard, muito bem ilustrado com fotografias sugestivas, onde sobressaem chicotes, coleiras de bicos, trelas longas, estrados de madeira com sistemas de argolas e cordelinhos para levarem os cães a certas posições, cães aturquesados no meio das pernas, ao mesmo tempo que lhes puxam torcem e beliscam as orelhas para, com o auxílio de um torniquete, os obrigarem a abrir a boca e lhes enfiarem dentro objectos que terão de conservar e transportar, num cenário de circo deprimente e irracional.
Mas só recentemente tive provas concretas dessa irracionalidade quando me foram confiados três lindos cachorros, que haviam sido submetidos a esse tratamento e restituídos ao dono com o estigma humilhante e aniquilador de “geneticamente incapazes”.

Já na minha posse, para os experimentar, ao lançar-lhes o “objecto de treino” com a ordem simultânea de “vai buscar”, cada um foge para seu lado, apavorado, como se tivesse rebentado uma granada no meio deles.
Procurei acalmá-los chamando-os e tentando fazer-lhes festas, mas nenhum deles consentia que lhe tocasse na cabeça, no focinho, ou nas orelhas.
Interrompi, de imediato, os exercícios e só passado uns dias, de muita convivência e da necessária propedêutica, os retomei.
Ao fim de dez minutos, todos eles corriam a buscar o objecto, numa atitude de grande alegria e entusiasmo.

Não se julgue, no entanto, que pratiquei algum feito extraordinário, mas antes um acto banalíssimo, o mais trivial, no “âmbito do ensino”; pois não há nenhum cachorro, perdigueiro ou coelheiro, com pedigree ou sem pedigree, seja de que raça for que não seja cem por cento receptivo ao ensino voluntário de trazer à mão e não o execute com alegria e paixão.
Por isso, o cobro forçado, mesmo administrado com sucesso, constitui sempre uma afronta para o cachorro e um atestado bem pouco abonador para quem precise de recorrer a ele.

È verdade que, se for um cão adulto ou um cachorro a caminho de o ser, e que, por isso mesmo, já não está para certas brincadeiras, já poderá oferecer alguma dificuldade, ou requerer mesmo alguma experiência e intuição. Mas um caçador que se preze e se orgulhe de o ser não irá começar quando já deveria ter terminado.

Assim, para evitar essas dificuldades, ou mesmo o insucesso, e não ter depois que recorrer à genética para se justificar da azelhice e falta de jeito, a altura ideal para começar é a partir dos dois meses. Não custa compreender e aceitar: sabemos que o cachorro é por natureza vida e movimento, traduzidos em constantes brincadeiras e na irresistível tendência de abocanhar tudo o que lhe faça jeito. Até uma simples folha ou erva baloiçando ao vento é um convite irresistível ao seu dente que não perdoa. Vamos, pois, aproveitar essa tendência para o ensinar a trazer à mão.

Peguemos num pequeno pano, atado em nó, e passemos-lhe com ele pela frente, roçando-lhe suavemente o focinho. Não tardará a entusiasmar-se e a deitar-lhe o dente. Se não for à primeira, será à segunda ou terceira. É uma questão de teimar. Só não abocaria, se ainda não se sentisse à vontade no novo ambiente. Vamos partir do princípio que está tudo em ordem.

Passemos-lhe, pois, com o pano pelo focinho e eis que, tendo-o filado, o puxa, entusiasmado, com sacudidelas de cabeça para um lado e para outro. Sem o largarmos, deixemos que ele no-lo dispute e, passado um pouco, tiramos-lho docemente e atiramos-lhe com ele para a frente, de modo que ele o veja, dizendo-lhe: “Vai buscar! Vai buscar!“.

Ele gostou da brincadeira e, querendo continuar, apressar-se-á a agarrá-lo, regressando com ele nos dentes, todo ufano e triunfante.

Agarramo-lo novamente por uma ponta e vamos puxando suavemente para não forçar os seus dentitos, ao mesmo tempo que vamos repetindo: “Dá cá! Dá cá!” até lho tirar-mos. Fazemos-lhe muitas festas, muitas meiguices, uma guloseima, e prosseguimos repetindo o exercício sempre da mesma maneira.

É evidente que ele, ao princípio, não compreende absolutamente nada do que lhe dizemos. Vai buscar apenas porque quer brincadeira. Mas com o tempo, ao fim de uma semana, ele associará e compreenderá perfeitamente o sentido e significado das expressões: “Vai buscar!” e “Dá cá!”.

E se o ensino de trazer à mão se resumisse apenas em conseguir que o cão nos trouxesse as peças caídas à nossa frente, poderíamos já dar por terminado este trabalho. Bastaria continuar com os mesmos exercícios para que eles ficassem bem consolidados. Mas mais importante do que a banalidade de nos trazer as peças caídas à nossa frente, é levar o cão, isso sim, a procurar e recuperar aquelas que caem ou se afastam, feridas, não se sabe onde e para onde e, por conseguinte, desenvolver-lhe o olfacto e ensiná-lo a servir-se dele. É o que vamos tentar nos exercícios seguintes.

Todos nós sabemos, ou podemos facilmente verificar, que os aromas da caça não se expandem em todas as direcções, nem andam a bailar, como borboletas, à frente do focinho do cão. Têm caminhos precisos e determinados: uns no terreno que pisam e objectos contactantes; outros, no ar, seguindo a direcção do vento, em linha recta, com tendência par se elevarem e diluírem.

Ora, sabendo nós que todo o cachorro tem o instinto natural de procurar com o nariz no chão, facilmente se concluirá que, se não for contrariado nessa tendência, estará, na maioria dos casos, irremediavelmente condenado ao insucesso.

Assim, para começar, e partindo do princípio que as primeiras lições terão lugar em qualquer divisão da casa, o pano, ou “saco das penas” será lançado, de forma a que ele veja, não para o chão, mas para cima de uma cadeira, da mesa, do sofá, do peitoril, enfim, para todos os sítios possíveis e imagináveis em que ele para lá chegar tenha que levantar bem a cabeça e empinar-se.

Quando tivermos explorado todos esses possíveis lugares, continuaremos com os mesmos exercícios, mas introduzindo-lhe uma pequena modificação: agora o objecto, depois de se lhe dar a cheirar, e à ordem de vai buscar, será lançado de forma que ele não veja onde vai cair. Para isso, os exercícios serão realizados à noite, ou, de dia, fechando as janelas e persianas de forma que a escuridão seja total.

Ora, como o cachorro já conhece todos os possíveis lugares, não lhe será difícil fazer agora com o nariz o que estava habituado a fazer com os olhos.

2ª Fase
O ensino de trazer à mão, desligado ou desassociado da componente caça, não fará qualquer sentido. E todos nós sabemos que nenhum cachorro começará a caçar por obra e graça do Espírito Santo, ou com duas cantigas à mesa do café, mas em passeios regulares e frequentes pelo monte, onde , mesmo que de princípio não haja caça, bastará o contacto directo com a natureza, infestada de cheiros e odores da mais diversa bicharada, para despertar nele o seu instinto de caça. Depois, sim, para que o seu instinto de paragem se manifeste e se desenvolva, será preciso proporcionar-lhe as respectivas espécies venatórias.
Ora, aproveitando estes passeios que por conveniência somos obrigados a fazer, levaremos o respectivo “saco de penas” e sempre que as circunstâncias o aconselhem e as condições do terreno o permitam, lancemos-lho para o meio do mato, à ordem de “ Vai buscar!”, fazendo os possíveis para que nem sempre caia no chão, mas fique preso ou suspenso na vegetação ou ramos, o mais alto possível, dentro do razoável.

Se, eventualmente, o objecto ficar à mostra, não nos preocupemos demasiado. Primeiro, porque, mesmo vendo ir o objecto no ar, a olho, tem dificuldade em o localizar e calcular a distância. Segundo, porque para objectos parados, que não mexam ou se movimentem, é um autêntico cegueta. Todos nós o verificamos na prática: Cães bons e eficientes passarem por cima da caça morta, ou ferida, e só uns metros à frente travarem e voltarem para trás, apenas porque o seu radar o acusou.

Naturalmente, que em todos esses exercícios devemos agir com prudência e perspicácia, não o submetendo nunca a provas que não tenhamos a certeza de poder vencer. Se, por exemplo, um cachorro de dois meses não se afastar do dono mais de 10 ou 15 metros e lhe lançarmos o objecto para 25 ou 30 metros, no meio do mato, é mais do que evidente, que será mal sucedido. E um cachorro, iniciado o seu ensino, deve não só ir buscar, mas encontrar o que se lhe manda procurar. Ensinado nesta base, não conhecendo o insucesso, não o admite e, por isso, continuará a procurar até o encontrar, nem que seja no fim do mundo. Caso contrário, se as coisas não lhe aparecerem logo à frente do focinho, a reacção mais provável será a desistência de procurar.

Mas, para diversificar e valorizar todo este trabalho, de todos os exercícios que possamos idealizar e pôr em prática, o mais espectacular e mais demonstrativo do seu potencial olfactivo, consiste em colocar o objecto de treino “ o saco de penas” na parte mais alta de um arbusto ou penedo, se predominarem no terreno, sem que o cachorro se aperceba, continuando nós a caminhar. Umas centenas de metros à frente, voltaremos para trás e de modo a passar à direita ou à esquerda, consoante a direcção do vento, sempre atento à reacção do cachorro, sem no entanto dizermos literalmente nada. Se, eventualmente, nada acusar, continuaremos a andar para a frente e para trás, passando cada vez mais perto, até ele o acusar.

Só depois de o encontrar e abocanhar, então sim, nos devemos manifestar, pedindo-lho com o habitual “Dá cá!” “Dá cá!”, esperando que no-lo traga, ao mesmo tempo que no devemos “desfazer” em elogios, festas, carícias, etc, etc.
Naturalmente que, a princípio, dada a inexperiência de qualquer cachorro, começaremos a passar por perto. Depois, à medida que for crescendo e evoluindo, vamos tentando distâncias cada vez mais longas.

Quando o cachorro tiver seis, oito, dez meses, e ele, com um movimento brusco de cabeça, acusar a presença do objecto à distância de dois, três e quatro tiros, e depois ir por ali abaixo, de cabeça levantada, direitinho ao altar que nós lhe preparámos, só temos que nos benzer e bater com uma pedra na cabeça para sabermos que não estamos a sonhar.

Como já se percebeu, o mérito e originalidade deste exercício reside apenas no facto do cachorro não estar de sobreaviso e, por isso mesmo, podermos avaliar, até ao milímetro, o seu potencial olfactivo e sabermos se o funcionamento do seu radar é permanente ou intermitente lento e distraído.

Devo, no entanto, prevenir que este exercício só resultará, se o cachorro estiver viciado nos exercícios de trazer à mão, se os associar a coisas agradáveis, e não a cobros forçados, coleiras electrónicas, e outras selvajarias afins, e se o objecto de treino for o da sua predilecção. Caso contrário, poderá cheirá-lo, tropeçar nele um cento de vezes que passará e andará sem lhe ligar absolutamente nada.

Conclusão
O treino do cachorro não tem prazo nem limite, é para toda a vida. Só assim será possível atingir e conservar níveis de actuação consentâneos com o seu próprio potencial. Simplesmente, hoje, já ninguém tem tempo nem disposição. Mesmo os mais disponíveis, com tempo para tudo e para nada se declaram totalmente ocupados. E assim o cão, nos seus defeitos e limitações, é apenas vitima inocente da indiferença, do desleixo e da insensibilidade do dono. Já não há o culto, o brio, a dedicação, o reconhecimento por tudo aquilo que representava na vida do caçador e até da família. E isso vem-se reflectindo na caça que deixou de ser o desporto das emoções, dos princípios, das profundas amizades, que irmanava no elo da igualdade e apreço, o rico e o pobre, o social influente e o homem simples. Mas cada vez mais uma farra e um negócio em que cada um procura desenrascar-se o melhor possível.

Um exemplo não ficará nada mal:
Recentemente fui convidado por um amigo do fundão, bom companheiro e bom caçador, para uma caçada na Idanha. Custaria 15.000$00, com dez perdizes por caçador, e direito ao almoço.

E vai muita gente –perguntei-?
Bem –respondeu- eu também fui convidado, não sei bem. Mas, em princípio, seremos nós e talvez mais um grupo.

Aceitei. No dia e à hora marcada lá estávamos nós no centro da Idanha. Com surpresa minha, já havia muita gente e os carros, carrinhas e carrões, com ruidosas e impacientes matilhas de perdigueiros e coelheiros, não paravam de chegar. Não sei quantos caçadores seriam. Só sei que, a dada altura, um elemento se identificou como sendo o número 67.

Depois de alguma espera, soube que as perdizes iam ser largadas em cinco lugares diferentes. Executada essa tarefa, recebemos ordem de partir. Chegado a um desses pontos ainda eu não estava equipado e já o arraial era intenso, com coelheiros a correr e a latir por entre os perdigueiros.

Eu, como já fui chumbado por duas vezes, e receando não escapar da terceira, afastei-me da confusão, na esperança de que tiros precipitados fossem encaminhando alguma perdizita para o meu lado. Como de facto: sempre atento ao som do tiroteio, era só vê-las surgir de lá, calcular-lhes a pista de aterragem, e o resto era com os cães.

Foi uma manhã agradável, com sete perdizes mortas, não contando a oitava, filada pelo cão, no ar, depois de amarrada no buraco de um parede, mas que, ao abrir a boca para ma entregar, ela se desprende dos dentes como um relâmpago.
Mas fui verificando que, de uma maneira geral, quase todos traziam mais do que eu.

Por volta do meio dia, como a chuva começava a apertar, todos nos fomos dirigindo para a zona da Nossa Senhora da Graça, mais propriamente para um pavilhão ou armazém, térreo, mas muito acolhedor naquela tarde chuvosa, onde seria servido o almoço, um porco no churrasco.

Quando cheguei, e como visse no chão um montito de perdizes, perguntei qual o seu significado. Foi-me dito que as perdizes seriam ali depositadas para serem divididas no final.

Fui buscar as minhas sete, mas fiquei logo com a pulga atrás da orelha, por me parecer que as perdizes ali depositadas não podiam corresponder ao número de caçadores que já ali estavam. Desconfiado, fui observando os que vinham chegando: uns traziam uma; outros, duas; alguns, três; e só de vez em quando aparecia um ou outro que deveria trazer a caça toda. Mas, juntamente com todos esses grupinhos, não eram poucos, os mais abençoados de consciência, que não traziam literalmente nada. Como não era possível acreditar em tanta azelhice ou falta de sorte, passei o almoço a contemplá-los e a ouvi-los, tentando definir-lhes o perfil psicológico. Decepcionante e confrangedor.

No final, as perdizes foram divididas calhando duas a cada caçador. Eu peguei nas minhas, com alguma tristeza por ver tanto sebastião mascarado de caçador, e disse apenas: Afinal, paguei 15 000$00 para caçar dez perdizes. Mato sete e levo apenas duas sabendo que a maioria matou mais do que eu. Já vejo que muita gente vem à caça apenas para encher o saco e encher mula, porque ética e desportivismo não há nenhum. E mais não disse. Acrescento agora que ao almoço compareceram 42 caçadores a que correspondiam 420 perdizes. Agora vejam: -42 caçadores no meio de 420 perdizes, bombardeadas durante toda a manhã, num terreno em que até à fisga era quase impossível não matar nada, para no final apresenta-mos 84 perdizes.

Nós, caçadores, já nem na trafulhice temos classe!
Acrescento ainda que depois de chegar a casa, o amigo que me convidou me telefonou dizendo que, depois de eu ter saído, ele também tinha refilado e que, portanto, na semana seguinte poderíamos lá ir sem pagar nada.
Não aceitei pela simples razão de que para mim caçar não é transformar o monte na feira da ladra.

È evidente que não culpabilizo os dirigentes do Clube ou da Associativa, pois eles não poderiam chegar ali, agarrar cada caçador pelas orelhas, como se fazia aos garotos, e levá-los ao carro para entregarem as perdizes escondidas. Mas como organizadores e vendedores de uma jornada de caça, tinham a obrigação moral e desportiva de dar ao acto um mínimo de decência e dignidade:
Primeiro, recusar frontalmente a participação dos caçadores coelheiros ou juntá-los a todos num grupo e destinar-lhes uma zona à parte. Agora aquela promiscuidade, ridícula e absurda, de perdigueiros e coelheiros à mistura, prática aceite com toda a naturalidade, por todas as partes, mostra bem o nível de uns e o desnível de outros.

Segundo, aceitar a inscrição por equipas, fazendo com elas grupos bem definidos e independentes, cada um dos quais com o seu território e as perdizes correspondentes ao número dos seus elementos. O resto seria com cada um dos grupos.

Agora fazerem-se as inscrições e limitarem-se a receber o dinheiro e a mandá-los para o monte, de enxurrada, e eles que se governem, só pode dar nesta bandalheira.

Moisés do Nascimento Costa